Memórias: Benje, o melhor guarda redes do mundo
Quando a bola estava longe, a sua presença lembrava mais a de um velho sábio africano, cansado das duras batalhas. Quando a bola ou os adversários invadiam, por alto ou pela terra, a sua área, ai ele virava pantera ou gato negro, felino, com uns reflexos espantosos, voando para as chamadas defesas impossíveis. Jogou entre os anos 60 e 70 (Farense, Varzim, Leixões...) e era... o melhor guarda redes do mundo!.
Na baliza, quando a bola estava longe e dava uns passos no meio da grande área, a sua presença lembrava mais a de um velho sábio africano, cansado das duras batalhas que travara no passado, do que a de um felino voador.
Não sei se esta imagem balzaquiana me ocupa a mente devido a só o ter visto, com olhos de ver, já na fase terminal da sua carreira, as ultimas quatro-cinco épocas, mas a verdade é que, logo por cima dessa imagem, se sobrepõe outra, muito mais forte, que emerge quando recordo a sua reacção quando a bola surgia na sua área, por alto ou com avançados isolados ávidos por o fuzilar.
Aí, o gigante Benje, virava gato negro, felino, voador, com uns reflexos espantosos, executando, com eficácia e beleza estonteante, as chamadas defesas impossíveis. Por ser negro, algo ainda hoje pouco comum, nos guarda redes que jogam na Europa, todo aquele aparato tinha ainda uma maior dose de magia feiticeira, como se fosse dono de qualquer segredo africano. Mesclava o inestético com o espectacular e criava um estilo único e deslumbrante. Como fez quase todas a sua carreira por clubes ditos pequenos (Varzim, Farense, Leixões...) daqueles que jogam para não descer de divisão, num tempo em que as diferenças entre as equipas em Portugal era gigantesca, as suas sucessivas grandes exibições adquiriam contornos verdadeiramente épicos.
Entre elas, recordo uma que assisti ao vivo, no repleto Estádio do Mar, numa tarde com o sol a pino, em Matosinhos, num Leixões-FC Porto, por volta de 1976, que tentei seguir, avidamente, procurando ver por entre a multidão, toda de pé, que seguia hipnotizada o jogo. As imagens que retenho desse hoje estão-me gravadas na memória e (curiosamente, não sei porquê, para além de uma série de cruzamentos para trás da baliza, de um careca lateral portista chamado Taí que, nesse gesto técnico falhado tanto irritava os adeptos azuis e brancos) todas elas estão relacionadas com as espectaculares defesas em voo de Benje. E como ele voava, naquele seu tradicional equipamento cinzento.
O jogo terminaria com uma grande vitória do Leixões por 0-0. É verdade, leu bem, não me enganei, o resultado final foi mesmo esse e nessa altura empatar com um grande era como uma vitória para essas pequenas equipas, sobretudo na rivalidade que opunha Leixões e FC Porto..
Benje pertence, indubitavelmente, ao universo mágico do futebol português, num tempo em que o império ia do Minho até Timor, ele era, vindo de Angola, como um símbolo desses enorme legado ultramarino que tantas glórias e grandes jogadores, brincas na areia, engraçados e fenómenos, deu ao nosso futebol.
A última vez que ouvi falar dele foi, salvo erro, em 2001. Era então funcionário fiscal da Câmara Municipal de Faro, onde se radicara finda a carreira. A beleza do seu estilo pode ser, em parte, apreciada na foto que encabeça este artigo, datada de 1973, num jogo contra o Benfica no velho Estádio da Luz, quando, defendendo as redes do Farense, voou, destemido, para roubar a bola dos pés do ponta de lança do Benfica chamado... Artur Jorge.
O homem que melhor definiu a categoria de Benje foi, no entanto, um famoso e precursor treinador que marcou uma época no nosso futebol, pelo sua juventude irreverente, discurso diferente, caustico e que, ainda hoje, estaria muito á frente da maioria dos treinadores que ocupam os bancos da Super Liga.
Era Joaquim Meirim e a história sucedeu quando treinava o Varzim, no inicio dos anos 70, e o guarda redes suplente (confesso que não me lembro o nome) andava sempre muito chateado porque nunca jogava. Nem um minuto sequer.
Foi então que Meirim, para o moralizar lhe disse para estar tranquilo, que a sua hora iria chegar, pois ele era...o melhor guarda redes da Europa.
O “keeper” suplente abriu os olhos de espanto. Se era assim, então porque não estava a jogar?
Simples: porque o titular, Benje, era o melhor guarda redes do... mundo!
Palavra de mestre Meirim.
Texto escrito em 11 de Novembro de 2004, por Luís Freitas Lobo em Planeta do Futebol
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